A Linhagem dos Dalai Lamas
por Octavio da Cunha Botelho
Nunca na história do Tibete um Dalai Lama teve tanta popularidade internacional como o atual, Tenzin Gyatso, o décimo quarto, cujo carisma o leva a ser bajulado em todos os cantos por onde viaja. A ocupação chinesa do Tibete, o massacre de seu povo e o exílio do seu líder comoveram o mundo e o transformaram numa celebridade mundial.
Entretanto, por trás da sua habitual mensagem de paz e de não violência está uma história de violência, que poucos conhecem, a qual esclarece como os dalai lamas chegaram a alcançar tanto poder sobre o povo tibetano. O breve estudo abaixo procura resumir estes esclarecimentos.
O isolamento do Tibete
Sobre a impenetrabilidade do Tibete, Emil Schlagintweit, um dos primeiros a escrever, em forma de livro, sobre esta região tão desconhecida dos ocidentais na época, observou em 1863: “pois penetrar no Tibete sempre foi uma matéria de grande dificuldade, ambas, em virtude dos obstáculos apresentados pelas grandes elevações do território, como também pelos sentimentos ciumentos e hostis dos nativos para com os estrangeiros” (Schlagintweit, 1863: 145). L. Austine Waddell, quem teve a rara oportunidade de estar com os lamas tibetanos por várias vezes no século XIX e.c., bem como permanecendo por longos períodos de tempo, aprendeu a língua tibetana, tinha mais facilidades de penetrar nesta região quase impenetrável, em virtude de ter sido um militar britânico (mesmo assim, nalgumas vezes teve de entrar disfarçado), disse em 1895: “Tibete, a terra mística do Grande Lama (Dalai Lama) … é ainda o mais impenetrável país no mundo. Por trás de suas barreiras de gelo, erguidas pela própria natureza, e quase intransponíveis, seus sacerdotes guardam seus desfiladeiros cuidadosamente contra estrangeiros. Poucos europeus entraram no Tibete, e nenhum, desde meio século atrás, alcançou a cidade sagrada (Lhasa). Dos viajantes dos últimos tempos, que têm se atrevido a entrar nesta terra obscura, após escalarem suas fronteiras e penetrarem em seus desfiladeiros, enfiando-se nos desertos de neve, mesmo os mais intrépidos fracassaram em ir além dos arredores da sua província central” (Waddell, 1972: 01-2; 1ª edição: 1895).
De modo que, o Tibete foi uma região tão fechada para o Ocidente, que os visitantes europeus, que a visitaram até o final do século XIX, podem ser contados nos dedos. Veja em seguida os relatos dos escritores que escreveram, na segunda metade do século XIX e no início do século XX, sobre os pouquíssimos visitantes europeus que alcançaram Lhasa (capital do Tibete). Curiosamente, os pioneiros foram missionários cristãos, porém nenhuma missão alcançou êxito, pois os religiosos eram logo expulsos.
O primeiro europeu a alcançar Lhasa, capital do Tibete, foi o frade Odorico de Pordenne, por volta de 1328 (Landon, 1905: 05-6) ou 1330 (Waddell, 1972: 02). Em 1661, os jesuítas Albert Dorville e Johann Gruher visitaram Lhasa em seus caminhos da China para a Índia. Depois, em 1706, os padres capuchinhos Josepho de Asculi e Francisco Maria de Toun entraram em Lhasa desde Bengala. Em 1716, o jesuíta Ippolito Desideri a alcançou vindo da Caxemira, permanecendo lá por cinco anos (1716-21). Ele foi o primeiro ocidental a aprender a língua tibetana. Em 1741, uma missão capuchinha conduzida por Horacio de La Penna, com cinco companheiros, chegou até Lhasa, no entanto seus esforços em propagar a fé cristã teve pouco sucesso, embora tenha sido recebida amavelmente pelas autoridades tibetanas. Entre os anos de 1774 e 1812 vieram os primeiros exploradores, George Bogle, um jovem escritor da East India Company, tenente Samuel Turner e Thomas Manning, um excêntrico matemático e pesquisador oriental, todos eles alcançaram, com relativo sucesso, o interior deste país de mistério. Os subsequentes foram os missionários Evariste Huc e Joseph Gabet, os quais alcançaram Lhasa em 1845, mas foram expulsos sete semanas depois da chegada (Schlagintweit, 1863: 145-6; Waddell, 1972: 02 e para aprofundamento, ver: Landon, 1905: 05-17). Bem, estes são os relatos dos que conseguiram, por outro lado não sabemos quantos foram os que tentaram, mas morreram ou desapareceram no caminho (Landon, 1905: 16).
A dificuldade para entrar no Tibete continuou pelos anos seguintes. Nos anos 1850, todos os estrangeiros foram expulsos e as fronteiras fechadas a todos de fora. Durante os anos 1923-49, o Tibete desfrutou de uma independência de facto, quando a China estava ocupada com guerras internas, com o movimento comunista e com a Segunda Guerra Mundial, mesmo assim o Tibete continuou a manter limitados contatos com o resto do mundo e Lhasa foi fechada aos estrangeiros. Porém, apesar desta situação, alguns exploradores conseguiram penetrar naquelas misteriosas terras naquele período. Desde então, foram possíveis descrições mais acertadas sobre a cultura e a religião dos tibetanos, com os trabalhos esclarecedores de W. W. Rockhill (1854-1914), Laurence Austine Waddell (1854-1938 e Sir Charles Bell (1870-1945). Atualmente, a situação é muito diferente, a região está aberta ao turismo, desde algumas décadas, o palácio Potala em Lhasa, antiga residência do Dalai Lama, transformou-se em ponto turístico, até os antigos aposentos íntimos do líder lamaísta podem ser visitados. No entanto, a prática do Budismo é atentamente controlada pelas autoridades chinesas.
O resultado da introversão tibetana
O isolamento do Tibete o manteve como o grande baluarte da cultura supersticiosa no mundo, onde se podia encontrar o maior cultivo das práticas mágicas. A cultura e a vida tibetanas testemunhadas pelos que as conheceram no século XIX, E. Schlagintweit, W. W. Rockhill, L. A. Waddell e Charles Bell lembram a retrógada mentalidade supersticiosa da Antiguidade e da Idade Média, com seu devotado envolvimento com as práticas da feitiçaria, do exorcismo, da bruxaria, da demonolatria, da adivinhação, da necromancia, etc. (Waddell, 1972: 403-19, 450-500 e passim), enfim, em outras palavras, o Tibete por muito tempo foi o “covil dos magos”.
Enquanto, no século XIX, a Europa e outros países do mundo experimentavam as transformações da Revolução Industrial, o Tibete se introvertia ainda mais, fechando suas fronteiras aos estrangeiros, mergulhando mais fundo na sua obsoleta cultura supersticiosa.
Parece que grande engano dos tibetanos, talvez estejam colhendo o que semearam, foi sempre pensar que a característica étnica era o suficiente para caracterizar o conceito de Estado. Em virtude do seu isolamento, eles não acompanharam as transformações no conceito de Estado que aconteciam na Europa, com as novas ideias de Montesquieu, de Rousseau e da Revolução Francesa, eles pensavam que apenas a propriedade étnica era suficiente para caracterizar a formação de um Estado. O resultado foi que nunca conseguiram o reconhecimento internacional como um estado independente. Enfim, os tibetanos não conheceram o conceito moderno de Estado:
1- Território: o Tibete nunca teve um território com fronteiras permanentes e claramente definidas, pois ora estava fragmentado por feudos rivais ou invadido por estrangeiros (mongóis, chineses e manchus).
2- Povo: a população sempre foi profundamente religiosa, na qual em cada província predominava uma ou outra seita do Lamaísmo, conforme a época e a dominação estrangeira. As seitas estavam sempre brigando entre si. Algumas seitas, ou mesmo mosteiros, tinham até seus exércitos particulares (Richardson, 1962: 39).
3- Governo: desde o século XVII, o Dalai Lama acumulou os poderes religiosos e políticos do Tibete, porém ele é apenas o líder na hierarquia de uma das seitas do Budismo Tibetano, a seita dominante, Gelugpa, e não uma unanimidade. As outras seitas também possuem suas hierarquias com seus líderes (Minmapa, Kargyupa, Sakyapa, Kadampa, Karmapa, etc.). Portanto, para o conceito moderno de Estado, o Tibete é uma região com um povo profundamente religioso governado por um líder de uma seita budista dominante. Enfim, o Tibete é mais uma “grande igreja” com poderes políticos e administrativos, do que um Estado.
Introdução e desenvolvimento do Budismo no Tibete
Dos tantos países por onde o Budismo se espalhou, o Tibete foi um dos últimos a recebê-lo e, mesmo assim, sua penetração foi lenta, até alcançar uma implantação definitiva. Em virtude da chagada tardia, a modalidade de Budismo recebida foi uma já heterogeneamente desenvolvida na Índia, o Budismo Vajrayana (o Veículo do Diamante).
Apesar de ser habitualmente conhecido como um dos países mais fechados do mundo, o Tibete, assim como outros países, também experimentou, no passado, sua época dourada, ou seja, durante o seu período de abertura e de expansão territorial, o Império Tibetano da dinastia Yar-Lung dos séculos VII e VII e.c., quando expandiu suas fronteiras até algumas regiões da China, do norte de Índia, do leste da Ásia Central, bem como incorporou o Nepal e o Butão. Este foi o império do rei Song-Tsen Gampo (604-650 e.c.), o maior personagem da história tibetana. No entanto, este foi o único momento de glória imperial do Tibete, pois, em seguida sucedeu-se uma fragmentação do seu território e um longo período de subordinação e de domínio por forças estrangeiras (mongóis, chineses e manchus revezaram o domínio por séculos.), intercalado por curtos períodos de independência, de unificações parciais e de pequenas expansões, até a última ocupação estrangeira, a dos chineses em 1949.
Com o aumento do seu poder militar, Song Tsen Gampo atormentou as fronteiras da China, de maneira que o então imperador chinês, Tai Tsung, da dinastia T’sang, ficou contente em chegar a um acordo com o jovem imperador tibetano e, para consolidar a aliança, deu-lhe a mão de sua filha, a princesa Wencheng, em casamento no ano de 641 e.c. Dois anos antes, ele já tinha se casado com a filha do rei do Nepal, a princesa Bhrikuti. Ambas as princesa eram budistas devotas. O jovem imperador tibetano se interessou pelo Budismo e, assim, enviou seu vassalo Thonmi Sambhoda para estudar Sânscrito na Índia. Após seu retorno, um alfabeto tibetano foi criado e a gramática foi codificada. Alguns textos budistas em Sânscrito foram traduzidos para o tibetano neste período. O sistema de escrita auxiliou a criar um sentido de comunidade cultural. Antes desta época (século VII e.c.), o Tibete era uma região selvagem, a chegada do Budismo, então, civilizou o Tibete.
Entretanto, este primeiro impulso não foi suficiente para fazer o Budismo decolar, a nova religião importada ainda sofria muita oposição da nativa religião xamânica Bon. No século seguinte, novo impulso foi dado pelo imperador Thri Song de Tsen (742-98 e.c.) quando este convidou monges budistas da Índia para ensinarem no seu país. Então, foi neste período que chegou ao Tibete, em 747 e.c., o monge tântrico Padmasambhava, o qual seria posteriormente envolvido em muitos relatos lendários (Waddell, 1972: 24-8; 380-2 e Evans-Wentz, 2000b: 101-92), um professor da escola budista de Nalanda, norte da Índia. A seita Minmapa o considera como o verdadeiro introdutor do Budismo no Tibete. Também, importante foi a vinda do erudito monge budista Santarakshita, nesta mesma época. Este último ordenou os primeiros monges tibetanos após a construção do primeiro mosteiro budista em Samye, no ano de 775 e.c. Neste período foram feitas ainda mais traduções de textos budistas para o tibetano.
Entretanto, no século seguinte, quase tudo foi por água abaixo com a perseguição aos budistas empreendida pelo imperador apóstata Lang-Darma, quem governou a partir de 836 e.c., bem como com o seu assassinato em 842 e.c. Uma guerra civil eclodiu e o império desintegrou-se, perdendo, com isso, seu poder militar e político. Lang-Darma foi o último imperador. Em seguida, segui-se um período de hibernação do Budismo Tibetano até o final do século X e início do século XI.
Com a queda do Império, perdeu-se também uma liderança central no Budismo Tibetano e, consequentemente, o sistema monástico enfraqueceu-se, abrindo as portas para o aumento das práticas tântricas por praticantes que não eram monges, geralmente adeptos casados. Sucedeu-se, então, um choque de opiniões entre os defensores da vida monástica, com base nos sutras do Mahayana, os quais acusavam os tântricos de deformarem o ensinamento do Dharma; e os tântricos, por sua vez, insistiam que não era necessária a vida monástica, considerando esta como inferior às práticas tântricas.
Para solucionar este conflito, o então rei do Tibete Ocidental, Ye-Shay-o, defensor do reestabelecimento do monasticismo, convidou o monge indiano Atisha (982-1054 e.c.) para residir no Tibete, o qual chegou em 1038 e.c. Ele foi o primeiro grande reformador do Budismo Tibetano. Atisha entusiasmou os tibetanos com seus ensinamentos e forneceu a base para a solução do conflito entre as práticas monásticas e tântricas, ele incluiu ambas em sua síntese. Seu discípulo, Drom-Don-ba (1005-64 e.c.), enfatizou o monasticismo e a prática do aspecto exotérico do Budismo. Esta ênfase o levou a fundar, em 1050 e.c., a seita Kadampa, a precursora da grande seita Gelugpa, esta última foi fundada pelo grande reformador tibetano Tsong Khapa (1357-1417 e.c.), em 1407 e.c., a corrente dominante do Budismo Tibetano até os dias de hoje.
A partir, então, do século XI, inicia-se uma efervescência no Budismo Tibetano, com o surgimento de muitos reformadores e a multiplicação de novas seitas, o que torna muito extenso expor todo o assunto aqui. Para conhecer um esquema geral das sitas do Budismo Tibetano, consultar a obra Tibetan Buddhism de L. A. Waddell, p. 55, onde as correntes são divididas em: reformadas (Gelugpa e Kadampa), semi reformadas (Kargyupa, Karmapa, Sakyapa e outras) e as não reformadas (sobretudo Minmapa). Para aprofundamento na história do Budismo no Tibete, ver: Waddell, 1972: 18-53; Conze: 1996: 104-6 e 127-38; Obermiller, 1996: 181s; Dreyfus, 2003: 17-31 e Wayman: 2006: 250-6.
A heterogeneidade do Budismo Tibetano
Quatro camadas se integram e se sobrepõem no Lamaísmo:
1ª camada: relativa à corrente do Hinayana (Pequeno Veículo, recebe este nome porque sua embarcação (yana) abriga poucos pretendentes, os quais precisam ser monges e passar por austeras disciplinas para alcançarem o Nirvana) os ensinamentos básicos de Buda, o monasticismo. Esta é a visão budista que gira principalmente em torno das três categorias: Samsara, Karma e Nirvana. Na tradição tibetana, estas ideias e práticas budistas raramente são autossuficientes, ao invés, elas são combinadas com a segunda camada.
2ª camada: as ideias e as práticas nos sutras (sermões) do Budismo Mahayana (Grande Veículo, recebe este nome porque sua embarcação (yana) abriga muitos pretendestes, não precisa ser monge para alcançar o Nirvana e está aberto a todos) que propõe o ideal do Bodhisattwa, a renúncia ao Nirvana para auxiliar os outros a alcançarem o budado. Isto exige a prática da conduta à Libertação, que consiste na prática de: moralidade, concentração, insight, compaixão e o caminho conhecido como “Veículo da Perfeição” (Paramitayana). Esta é a parte exotérica do Budismo Tibetano.
3ª camada: consiste nos textos esotéricos, as ideias e as práticas encontradas no Tantras, os quais ensinam o cominho secreto, o Mantra Secreto, ou Vajrayana (Veiculo do Diamante, recebe este nome porque sua embarcação (yana) abriga os ensinamentos do Hinayana, do Mahayana e dos Tantras). O objetivo da prática tântrica é ativar o potencial interno do discípulo para apressar a conquista do Nirvana.
4ª camada: o Budismo Tibetano não está limitado a estas três correntes canônicas. Existe uma grande quantidade de práticas populares tratando de: possessão, exorcismo, adivinhação, cura, adoração de demônios, invocação de elementos da natureza e de espíritos, busca de riqueza e de poder, etc. Este é o substrato xamânico da nativa religião Bon, o qual nunca se desgarrou da tradição budista do Tibete (Dreyfus, 2003: 18-20).
A linhagem dos Dalai Lamas
Poderá ser novidade para muitos, mas Dalai Lama não é o nome de uma pessoa, senão o nome de um cargo de líder religioso, assim como é o nome Papa no Catolicismo, o nome Patriarca na Igreja Ortodoxa e o nome Califa no Islamismo. O nome do atual Dalai Lama é Tenzin Gyatso (1935- , nome religioso), ele é o décimo quarto Dalai Lama, seu nome de família é. O nome Gyatso (oceano em tibetano) acompanha os nomes de todos os Dalais, exceto o primeiro, Gendun Drup (1391-1474 e.c.), tal como será visto em seguida.
A história dos Dalai Lamas começa em 1578 e.c., quando Sonam Gyatso (então abade do mosteiro Gelugpa de Drepung, quem depois se tornaria o terceiro Dalai Lama) visitou a Mongólia, por ser um brilhante erudito e um hábil missionário, converteu ao Budismo o líder mongol, Altan Khan, juntamente com um grande número de seus seguidores. Este último, por sua vez, concedeu a Sonam Gyatso o título de “Dalai” (oceano em mongol), uma tradução da palavra “Gyatso” (oceano em tibetano, no sentido de “oceano de conhecimento”). Depois, o título de Dalai Lama foi retrospectivamente concedido aos abades dos mosteiros de Drepung que antecederam Sonam Gyatso, estes foram, Gedun Truppa (1391-1474), sobrinho de Tsong Khapa, e Gedun Gyatso (1475-1542), de modo que, os dois primeiros Dalai Lamas receberam o título postumamente. Sonam Gyatso afirmou que ele era a reencarnação dos dois abades anteriores de Drepung (Gedun Truppa e Gedun Gyatso), aproveitando-se do então emergente sistema de lamas reencarnados (tulku, o qual acontece com a transferência da consciência de um mestre falecido para um recém-nascido), já utilizado por outras seitas lamaístas (Sakyapa, Karmapa, etc.) para assegurar a continuidade da linhagem e evitar que os bens dos mosteiros caíssem nas mãos de aproveitadores, a fim de, então, introduzir na seita Gelugpa, a linhagem de mestres reencarnados (tulku). Daí, a partir de então, todo Dalai Lama é a reencarnação de todos os Dalai Lamas anteriores, os quais, por sua vez, são conjuntamente a reencarnação de Avalokiteshwara, o Bodhisatwa da compaixão. O importante mosteiro Gelugpa de Tashilhumpo foi fundado por Gedun Truppa (o primeiro Dalai Lama) em 1445 e.c. Após o terceiro Dalai Lama (Sonam Gyatso), o mosteiro de Tashilhumpo passou a ter a sua própria linhagem de líderes, conhecidos como Panchen Lamas, paralelamente à linhagem dos Dalai Lamas. A linhagem dos Panchen Lamas (ou Tashi Lamas) são a segunda em autoridade na hierarquia da seita Gelugpa, após a linhagem dos Dalai Lamas, e também utilizam o sistema de mestres reencarnados (ver a lista da linhagem em: Waddell, 1972: 236 e para os relatos dos primeiros Dalai Lamas, ver: Richardson, 1962: 40-1 e Wayman, 2006: 253-4).
Após a morte do terceiro Dalai Lama, Sonam Gyatso, o seu sucessor, Yonten Gyatso (1589-1617 e.c.) foi suspeitamente encontrado, não por acaso, num dos bisnetos de Altan Khan, uma eficiente estratégia política para consolidar a aliança entre a seita Gelugpa e os mongóis, o que nos leva a suspeitar da honestidade do sistema de reencarnação de mestres (transferência de consciência de um mestre falecido para uma criança recém-nascida), já dotado pela seita Gelugpa (Wayman 2006; 254). Este fato consolidou a supremacia da seita Gelugpa, primado que, desde o século XVI, vigora até os dias de hoje. Porém, esta aproximação entre a seita Gelugpa e os mongóis provocou a revolta das seitas rivais, sobretudo da seita Karmapa, destronada pelos Gelugpas, então, apoiada pelo rei de Tsang (Tibete Central), desfechou um ataque contra os mosteiros Gelugpas de Drepung e Sera e o jovem Dalai Lama foi forçado a fugir. Os Gelugpas buscaram ajuda dos seus aliados mongóis, mas estes últimos não interviram imediatamente, e o Dalai Lama acabou morrendo com a idade de 25 anos de idade (Wayman, 2006: 254).
O quinto Dalai Lama, Ngawang Lobsang Gyatso (1617-1682 e.c.), foi o mais admirado de todos, por isso os tibetanos atribuíram-lhe o título de “O Grande Quinto”. Ele aliou-se com o líder mongol Gushri Khan (o grande patrono da ordem Gelugpa) que derrotou o rei Tsang, depois de uma guerra sangrenta e demorada, assim destituindo o poder militar dos Karmapas e, em seguida devolveu a liderança ao Dalai Lama, o qual expandiu o seu poder por todo o Tibete. O 5º Dalai Lama foi colocado no trono, como o líder religioso e temporal do Tibete, em 1642 e.c., e Gushri Khan ofereceu-lhe suas conquistas do Tibete Central e Oriental como presente.
Diante desta nova situação, o antigo palácio de Ganden, no mosteiro de Drepung, não servia mais aos propósitos do novo estado, uma vez que o palácio não podia ser considerado a capital política do Tibete. Então, iniciou-se a construção do palácio de Potala em 1645 e.c., cuja conclusão em 1649 e.c., transferiu a sede do governo para Lhasa.
Entretanto, mais uma vez, a escolha sucessória de um Dalai Lama está cercada de suspeita. Sabemos que, um dos sinais utilizados pelos lamas tibetanos para reconhecer que uma criança é a reencarnação de um lama falecido é pelo reconhecimento dos objetos pessoais utilizados por este último. O próprio “Grande Quinto” denunciou depois a fraude, sobre o seu teste de identificação de objetos, em um de seus escritos: “O oficial Tsawa Kachu do palácio Ganden (no mosteiro Drepung) mostrou-me estátuas e rosários (que pertenceram ao quarto Dalai Lama e outros lamas), mas eu fui incapaz de distingui-los. Quando ele deixou o quarto, eu o ouvi dizer aos outros do lado de fora que eu tinha passado no teste. Mais tarde, quando ele tornou-se meu tutor, ele sempre me censurava e dizia: você precisa se esforçar, visto que você foi incapaz de reconhecer os objetos” (Karmay, 2005: 12). Esta denúncia é perturbadora, porém o autor do artigo, Samten G. Karmay, não cita a fonte do registro de onde ele retirou a citação. Todos os outros livros consultados, quando tratam deste Dalai Lama, não mencionam esta denúncia.
O Sexto Dalai Lama, Tsangyang Gyatso (1683-1706), foi o mais exótico de todos. Em razão da sua vida libertina e de poeta (foi o único compositor de versos líricos do Tibete), foi deposto, preso e assassinado em 1706, com apenas 23 anos de idade (Waddell, 1972: 234 e Wayman, 2006: 262).
Os próximos dalai lamas, do sétimo ao décimo segundo, nenhum chegou até a maturidade. O sétimo Dalai Lama, Kelzang Gyatso (1708-1757) morreu aos 49 anos de idade, porém exerceu o cargo por pouco tempo, uma vez que foi exilado por muitos anos e só conseguiu assumir no final da sua vida; o oitavo, Jamphel Gyatso (1758-1804), morreu aos 46 anos. Pior ainda foram os quatro próximos, o nono, Lungtok Gyatso (1805-1815) morreu aos 10 anos de idade; o décimo, Tsultrin Gyatso (1816-1837) aos 21 anos; o décimo primeiro, Khendrup Gyatso (1838-1856) aos 18 anos e o décimo segundo, Trimley Gyatso (1857-1875) aos 22 anos de idade, todos sob fortes suspeitas de terem sido assassinados (Richardson, 1962: 59 e Waddell, 1972: 234-5).
O décimo terceiro Dalai Lama, Thubten Gyatso (1876-1933) interrompeu esta sequência de mortes prematuras e viveu até os 57 anos de idade, foi capaz de exercer o cargo por 38 anos, porém intercalados com períodos de permanência no exílio, para fugir das invasões britânica (1904-1909) e chinesa (1910-1913). Ele foi o primeiro Dalai Lama a perceber a importância das relações estrangeiras. Após seu retorno do exílio em 1913, introduziu algumas inovações no Tibete: o primeiro selo postal, a célula de dinheiro em papel, a polícia, etc. Neste mesmo ano, declarou independência da China e padronizou a bandeira tibetana, a qual é utilizada até os dias de hoje pelos militantes do movimento de independência do Tibete. Seu principal empenho foi evitar a dominação estrangeira no Tibete, embora com pouco sucesso, uma vez que os chineses, os britânicos e os russos cobiçavam a região.
O próximo, o décimo quarto, é o atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso (1935-). De todos os líderes tibetanos, é o único que não necessita de apresentação, pois foi o primeiro Dalai Lama a se transformar em celebridade mundial. Notícias sobre ele estão sempre nos noticiários de todos os países do mundo. Para onde vai, ele é recebido por um séquito de admiradores e de bajuladores. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1989. Ele residiu no Tibete até 1959, após o fracassado levante tibetano contra a ocupação chinesa, desde então ele vive em Dharamsala, Índia, onde formou um Governo Tibetano no Exílio.
Agora, o intrigante é que ele é um insistente pregador da paz e da não violência, à maneira gandhiana, no entanto, quando observamos, no breve estudo acima e, mais detalhadamente, através de um estudo da história do Tibete, a maneira violenta e sangrenta com a qual a sua seita lamaísta, a ordem Gelugpa, construiu e manteve a supremacia sobre as outras seitas rivais, nos tornamos perplexos. O primado da ordem Gelugpa sobre as outras rivais, no período do quinto Dalai Lama, foi obtido com muita violência e com muito sangue e graças à aliança com um sanguinário líder mongol, Gushri Khan.
Uma reflexão descontraída
O surpreendente, e até certo ponto intrigante, é a atribuição do titulo de Gyatso (oceano, em tibetano, no sentido de oceano de conhecimento) e Dalai (oceano, em mongol) para quase todos os líderes da seita Gelugpa, exceto o primeiro Dalai Lama. O curioso é que ambas as regiões (Tibete e Mongólia) não são banhadas pelo oceano. Pelo que se percebe do temperamento fechado dos tibetanos e a aversão pelos estrangeiros, é certo que quase a totalidade da população tibetana, por todos os séculos, nunca viu o mar, pois os tibetanos não costumavam viajar para longe. As praias mais próximas do Tibete estão nas regiões de Bangladesh e da província de Bengala na Índia, a muitas dezenas de kilometros de distância. Na época da atribuição do título (século XVI), não existiam a fotografia, o cinema e o vídeo, para que a imagem do oceano pudesse ser conhecida, pelo menos, através de reprodução. Talvez o primeiro Dalai Lama a ver o oceano seja o atual, uma vez que vive no exílio e viaja muito. Então, seria curioso saber a razão que levou um povo, que vive tão distante do mar, a atribuir o título importante de Oceano (Gyatso) para o seu maior líder.
Então, um leitor espirituoso deste estudo, poderá estar imaginando como poderá ser este oceano no qual viveram os Dalai Lamas. Pelas lutas violentas e o derramamento de sangue, nas disputas por poder e pela supremacia, tal como descritas acima, ele será imaginativamente levado a pensar que se trata de um oceano habitado por tubarões predadores, no qual cada um, com a ajuda de seu cardume, procura manter a soberania em suas águas e conquistar o poder sobre as dos outros, a fim de alcançar domínio sobre todo o oceano. Esta foi a briga entre as seitas tibetanas durante séculos.
Quanto à localização deste oceano, este mesmo leitor imaginará que, com tanto derramamento de sangue em busca de poder, certamente esta região não será o Oceano Pacífico, então, a região oceânica mais provável deverá ser o Mar Vermelho. Os períodos de exílio de alguns Dalai Lamas e os seus sofrimentos devem ter acontecido no Cabo das Tormentas e as misteriosas mortes prematuras dos Dalai Lamas IX ao XII, bem como o desaparecimento misterioso do quinto Dalai Lama (sua morte foi ocultada por alguns anos pelo regente tibetano na época) devem ter acontecido na região do Triângulo das Bermudas.
Enfim, aqueles que ouvem as pregações de paz e de não violência do atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso, e não conhecem a história tibetana, sobretudos os admiradores e os bajuladores, não são capazes de imaginar que, por trás desta mensagem pacífica, se esconde uma história de sangrentas lutas de sua seita, a Gelugpa, a fim de alcançar a supremacia sobre as outras correntes, até se tornar a ordem dominante do Budismo Tibetano.
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Fonte:https://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/02/a-linhagem-dos-dalai-lamas-2/
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