Vacuidade, relatividade e física quântica-Dalai Lama
"Para um budista Mahayana, que conhece o pensamento de Nagarjuna,
há uma ressonância indubitável entre a noção de vacuidade e a nova física. Se,
ao nível quântico, a matéria se revela menos sólida e definível do que parece,
isto para mim significa que a ciência se está a aproximar dos conceitos
budistas de vacuidade e interdependência. "
Trecho do Cap. 3 – Vacuidade, relatividade e física quântica; do livro
“O Universo num átomo”, de Dalai Lama. Editora: QuidNovi
Uma das coisas mais extraordinárias e fascinantes da física moderna é o
modo como o mundo microscópico da mecânica quântica desafia o nosso senso
comum. Os factos da luz poder ser considerada como uma partícula ou como uma
onda, do princípio da incerteza nos dizer que nunca podemos saber ao mesmo
tempo o que um electrão faz e onde está e a noção quântica de sobreposição
sugerem um modo de compreender o mundo inteiramente diferente do da física
clássica, em que os objetos se comportam de uma forma determinista e
previsível. Por exemplo, no caso bem conhecido do gato de Schrodinger, em que
um gato é colocado dentro de uma caixa contendo uma fonte radioativa que tem
uma probabilidade de cinquenta por cento de libertar uma toxina letal, somos
obrigados a aceitar que, até se abrir a tampa, este gato está ao mesmo tempo
morto e vivo, o que parece desafiar a lei da contradição.
Para um budista Mahayana, que conhece o pensamento de Nagarjuna, há uma
ressonância indubitável entre a noção de vacuidade e a nova física. Se, ao
nível quântico, a matéria se revela menos sólida e definível do que
parece, isto para mim significa que a ciência se está a aproximar dos conceitos
budistas de vacuidade e interdependência. Por ocasião de uma conferência em
Nova Deli, ouvi Raja Ramanan, um físico a quem os colegas chamam o Sakharov
indiano, estabelecer paralelismos entre a filosofia da vacuidade de Nagarjuna e
a mecânica quântica. Depois de ter conversado ao longo dos anos com muitos
amigos cientistas, adquiri a convicção de que as grandes descobertas da física
desde Copérnico dão corpo à ideia de que a realidade não é aquilo que nos
parece. Quando estudamos o mundo com uma potente lente de observação — seja ela
o método científico e a experiência ou lógica budista da vacuidade ou o método
contemplativo da análise meditativa — verificamos que as coisas são mais subtis
do que — e nalguns casos contradizem — os pressupostos da nossa visão do mundo
baseada no senso comum.
Podemos perguntar: Para além de se obter uma representação deficiente da
realidade, o que está errado em acreditar na existência independente e
intrínseca das coisas? Para Nagarjuna, esta crença tem consequências assaz
negativas. Ele sublinha que é a crença na existência intrínseca que está na
base de uma disfunção, que se perpetua a si própria, no nosso comportamento com
o mundo e com os outros seres sencientes. Ao atribuir a determinados objetos
ou acontecimentos propriedades intrínsecas de atração reagimos a estes com um
apego ilusório, enquanto a outros, a quem atribuímos propriedades intrínsecas
de repulsa, reagimos com aversão ilusória. Por outras palavras, Nagarjuna
afirma que tentar apreender a existência independente das coisas conduz à
insatisfação, que por sua vez dá origem a uma cadeia de ações e reações destrutivas
e de sofrimento. Segundo ele, em última análise, a teoria da vacuidade não é
uma questão de mera compreensão conceptual da realidade. Tem profundas
implicações psicológicas e éticas.
Uma vez fiz ao meu amigo físico David Bohm a seguinte pergunta: Da
perspectiva da ciência moderna, para além da questão de se obter uma
representação deficiente da realidade, o que está errado em acreditar na
existência independente e intrínseca das coisas? A sua resposta foi
elucidativa. Ele disse que se examinarmos as várias ideologias que dividem a
humanidade, como racismo, o nacionalismo extremo e a luta de classes marxista,
um dos factores-chave da origem destas é a tendência para ver as coisas como
intrinsecamente divididas e desligadas. Deste equivoco resulta a crença de que
cada uma destas divisões é essencialmente independente e tem existência por si
própria. A resposta de Bohm, baseada no seu trabalho de física quântica,
reproduz a preocupação ética com a manifestação destas crenças que já
inquietara Nagarjuna, cujos escritos datam de cerca de dois mil anos antes. É
claro que, a bem dizer, a ciência não se ocupa de problemas éticos nem de
juízos de valor, mas ela não deixa de ser um empreendimento humano e, assim, de
estar ligada à questão básica do bem-estar da humanidade. Deste modo, num certo
sentido, a resposta de Bohm não tem nada de surpreendente. Gostava que houvesse
mais cientistas com a sua compreensão do inter-relacionamento entre a ciência,
os seus quadros conceptuais e a humanidade.
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